A aldeia, o Pintor e a Rainha
Logo no início deste mês, nossos olhos e nossos corações voltam-se para o Santo Natal. Voltam-se para a manjedoura onde repousa um Menino – o Divino Infante, adorado por sua Mãe Puríssima e São José, numa fria gruta de Belém. A alegria e a atmosfera natalina penetram nossos lares, brilham nos olhares inocentes, enchem de júbilo nossas almas. Mas, lamentavelmente, esse clima está quase desaparecendo nos dias de hoje. Não deixemos que isso aconteça! Depende de cada um de nós. Todos podem dar seu contributo para impedir que se distancie da face da Terra o ambiente próprio ao Natal, outrora tão marcante.
Wilson Gabriel da Silva
A pequena cidade ao pé dos Alpes vai mergulhando na quietude, à medida que um curto dia de inverno vai declinando. A neve cobre a paisagem, como alvo manto que aos poucos vai adquirindo tonalidades azuladas, enquanto as últimas claridades do dia disputam com a penumbra que avança. A fumaça sobe com elegância do alto das chaminés, e se difunde o agradável aroma de variados quitutes. Entrecortam o silêncio, aqui e acolá, o cacarejar de algumas galinhas que se acomodam no poleiro, o latir de um cão. Tudo indica a natureza preparando-se para o repouso.
De vez em quando, os refrãos de uma cantoria profana partem de um beco unido à rua principal. Sem dúvida, alguns folgazões antecipam na taverna a festa que terá lugar nas casas de família. Pela calçada, duas mulheres sobem decididamente em direção à praça. Os olhares denunciam o comentário irônico a respeito da taverna. A mais distinta não esconde sua reprovação, prevendo talvez os resultados do excesso de bebida.
A atmosfera natalina
De longe, aproximam-se a passo lento dois homens, reflexivos. Um carrega o peso da idade e da vida. O outro, jovem, tem na face a marca da fúria das paixões. Do alto da praça, o esguio campanário da igrejinha, co roado por sua cúpula dourada, domina o vilarejo. Subindo as escadarias, a catequista conduz um alegre bando de crianças. O soar compassado do velho sino anunciando o Angelus parece convidar todos a buscar lenitivo no sacramento da penitência. Dentro da igreja, um padre atende pacientemente a longa fila de confissões. Junto ao órgão, um coral afina os últimos acordes das músicas que serão cantadas na Missa do Galo: Stille Nacht, heilige Nacht... "Noite silenciosa, noite sagrada..." É véspera de Natal!
Se as ruas estão quase vazias, dentro das casas a vida é intensa. Na cozinha, as mulheres preparam com afã deliciosos pratos que serão servidos na ceia, enquanto conversam animadamente. No salão, a juventude da casa decora o presépio e a árvore de Natal. O avô entretém alguns netinhos com histórias de outros tempos. Uma pequena roda de homens conversa no salão. Animação, calma, reflexão, alegria primaveril, são sentimentos que se misturam nesse ambiente familiar profundamente católico.
De um ambiente assim brotou a célebre canção natalina conhecida entre nós como Noite feliz. Ainda hoje encontram-se aqui e acolá, na Europa cristã, restos vivos de tradições que deram origem, por exemplo, à floração de canções natalinas (só nos países de língua alemã, são milhares). O mesmo se poderia dizer de contos e legendas, de brinquedos infantis ricos em inspiração e beleza.
Talvez se possa dizer que o Natal é a festa da inocência, porque nasceu o Inocente por excelência, Nosso Senhor Jesus Cristo. O Verbo de Deus encarnou nas entranhas puríssimas de Maria, e depois entregou-se à morte na cruz para nos resgatar a todos de toda iniqüidade1. Ou seja, do pecado, que é, em sua sordidez, imundície, feiúra, maldade, tirania, o oposto da inocência.
Somos todos pecadores porque, filhos de Adão, nascemos com o pecado original. Mas o Natal revela muito bem a diferença que existe entre o pecador purificado pelas águas
do batismo, que conservou a inocência batismal ou então reconhece seus pecados atuais, bate no peito com humildade e busca o perdão, e aquele que orgulhosamente desafia a Deus, estadeando sua revolta. Os inocentes e os contritos, refugiando-se junto ao Menino Jesus e Maria Santíssima, encontrarão a paz e a felicidade que são possíveis neste vale de lágrimas. Os revoltados viverão perpetuamente na geena da inveja, do remorso, do ódio e do desespero.
Cidades que são pedaços do Céu
“Senta-te à minha direita até que eu ponha teus inimigos por escabelo de teus pés”, diz o Padre Eterno ao Verbo encarnado.
Quem são esses inimigos contra os quais Nosso Senhor vem para triunfar? O demônio, o mundo e a carne; e os que tramam com o poder das trevas.
Se quisermos, pois, reconstruir a cidade ideal, onde reine a ordem, o bem, a verdade, a beleza, devemos compreender a fundo essa oposição irreconciliável entre a virtude e o pecado. Será preciso que seus habitantes e dirigentes — sejam eles eclesiásticos ou leigos, nobres ou plebeus — pratiquem integralmente os Mandamentos, tenham verdadeira devoção a Nossa Senhora e espírito de luta contra os inimigos de Cristo e da Igreja, seu Corpo Místico. Somente a sociedade imbuída desse espírito profundamente cristão poderá gerar famílias, aldeias, cidades e regiões tão encantadoras que parecem pedaços do Céu.
Cidades que são pedaços do Céu
“Senta-te à minha direita até que eu ponha teus inimigos por escabelo de teus pés”, diz o Padre Eterno ao Verbo encarnado2.
Quem são esses inimigos contra os quais Nosso Senhor vem para triunfar? O demônio, o mundo e a carne; e os que tramam com o poder das trevas.
Se quisermos, pois, reconstruir a cidade ideal, onde reine a ordem, o bem, a verdade, a beleza, devemos compreender a fundo essa oposição irreconciliável entre a virtude e o pecado. Será preciso que seus habitantes e dirigentes — sejam eles eclesiásticos ou leigos, nobres ou plebeus — pratiquem integralmente os Mandamentos, tenham verdadeira devoção a Nossa Senhora e espírito de luta contra os inimigos de Cristo e da Igreja, seu Corpo Místico. Somente a sociedade imbuída desse espírito profundamente cristão poderá gerar famílias, aldeias, cidades e regiões tão encantadoras que parecem pedaços do Céu.
Essa é a impressão que se pode ter ainda hoje em alguns lugares, mas que infelizmente conservam apenas a casca, já não têm mais o conteúdo da vida católica que possuíam no passado.
É compreensível que, numa civilização autenticamente cristã, a Terra possa assemelhar-se ao Céu. Pois se uma sociedade vive realmente da seiva de Nosso Senhor Jesus Cristo, recebida através dos sacramentos, em suas obras resplandecerá forçosamente a fé e o espírito católico de que ela vive.
Pela via do contraste, compreenderemos igualmente a situação atual do mundo, no campo temporal como no espiritual.
Nas cidades, o império do crime, por vezes organizado e triunfante. Basta lembrar algumas referências: Rio, São Paulo, Comando Vermelho, PCC, corrupção, narcotráfico, Estado paralelo. Nos meios de comunicação e diversão, a pornografia cada vez mais freqüente e vitoriosa, acompanhada da homossexualidade, inclusive em sua variante particularmente abjeta, a pedofilia. Nos poderes públicos, freqüente desinteresse pelo autêntico bem comum, que leva a proporcionar os meios sociais adequados para glorificar a Deus e facilitar a salvação das almas. Quanto aos princípios teóricos de governo, quando estes existem, são em geral pelo estabelecimento da igualdade revolucionária, e portanto injusta; bem como de práticas imorais, traduzidas em leis e reformas como as que têm sido implantadas em âmbito universal.
Acelera-se, por outro lado, a desagregação das famílias com a banalização dos divórcios e a generalização do amor livre. Com o triunfo do hedonismo e a busca
egoísta do prazer pelo prazer, assassinam-se os filhos mediante os abortos, ou não se educam cristãmente os que nasceram. Numa época em que pais matam os próprios filhos, há também filhos que matam os pais. Tal é a triste situação das pessoas e das famílias que, deixando-se arrastar pela pressão da sociedade neopagã, dobram os joelhos diante dos ídolos contemporâneos: a televisão, a moda, os que ditam as regras nas rodas sociais.
E a Santa Igreja Católica, a única verdadeira Igreja de Deus?
É melhor calar. Lê-se no Gênesis que o Patriarca Noé, tendo-se embriagado por inadvertência, ficou nu. Um de seus filhos viu-o e foi contar despudoradamente aos irmãos. Por isso sua descendência foi amaldiçoada, ao contrário dos outros, cuja preocupação foi de cobrir a nudez paterna, evitando fitá-la. Esse mesmo respeito filial, devemos tê-lo em relação à Igreja. O que não significa fechar os olhos à realidade ou pactuar com o mal de tantos pastores que a si mesmos se degradam. Pois é público e notório que a Igreja se vê envolta hoje em uma crise sem precedentes, cuja gravidade tem sido reconhecida mesmo pelas mais altas autoridades eclesiásticas4. Ademais, a meditação dessa dolorosa crise seria mais própria à Semana Santa do que às alegrias do Natal.
Nossas considerações podem ser resumidas numa metáfora empregada pelo Prof. Plinio Corrêa de Oliveira. Comparou ele a história do mundo e da Igreja a um grande quadro, onde um celeste pintor teria representado toda a beleza e ordem da Criação. Para maior brevidade, imaginemos a aldeia descrita no início deste artigo, não com suas limitações, mas acrescida de todas as perfeições possíveis, refulgindo em todo o seu esplendor: harmonia das classes sociais, das famílias, das pessoas de todas as idades e condições, das demais criaturas dos reinos animal, vegetal e mineral. Tudo estaria ali representado em conformidade com os planos de Deus, dando uma idéia do paraíso terrestre.
Na calada da noite, enquanto o celeste pintor adormece, a mão misteriosa de um ente maligno adultera completamente esse quadro: o comerciante digno e honesto tornou-se vulgar ladrão; a linda e virtuosa princesa é agora vil prostituta; o nobre e heróico cavaleiro transformou-se em repugnante efeminado; o grande rei bondoso transformou-se em desprezível escravo revoltado; a criança inocente passou a ser a própria encarnação do vício. As mesmas adulterações se verificam nas paisagens e demais detalhes: palácios de conto de fadas transformados em horríveis pardieiros; lindos pássaros tornaram-se monstros; até a vegetação ficou pavorosa e agressiva, como num retrato do inferno.
Pode-se imaginar o assombro e a indignação do celeste pintor diante dessa pavorosa desfiguração de sua obra? Haverá exagero nessa comparação entre o mundo de hoje — deformado por uma Revolução que vem corrompendo a civilização cristã desde o século XVI — e os desígnios do celeste pintor, o próprio Deus?
Se notamos traços desse pesadelo neste Natal de 2002, o que fazer? Se não sentimos mais aquele clima natalino, outrora tão acentuado e que se percebia em todos os lugares, o que fazer?
Se a frágil barquinha de nossa alma, ou mesmo a barca da Igreja, for agitada pelas borrascas deste mundo, saibamos manter inabalável a confiança no Coração de Jesus e de Maria5.
Voltemos nosso olhar para o presépio. Aquele Menino envolto em panos e aquecido pelo bafo dos animais é o Anjo do Grande Conselho, é o Filho de Deus! "Senta-te à minha direita até que eu ponha teus inimigos por escabelo de teus pés", diz-lhe o Padre Eterno, com o qual Ele é Um. Em outras palavras, aquele frágil Menino é Deus onipotente, Criador dos Céus e da Terra! É Ele o celeste pintor, e portanto pode anular num instante a deformação realizada em sua obra pelo Maligno!
Mas o que posso eu, pobre mortal, “vermezinho e miserável pecador6”? O que podeis vós, leitor, leitora?
“Tudo posso naquele que me conforta”, devemos responder com São Paulo7. Mas poderemos muito mais ainda se nos voltarmos para a Rainha de quem o Menino Deus quis depender totalmente para vir morar entre os homens.
Vida, doçura, esperança nossa, Maria pode tudo junto ao Altíssimo. Mãe de Cristo, Mãe nossa! Advogada nossa! É só nos ajoelharmos diante do Presépio, pedirmos tudo o que quisermos ou tudo o que Ela nos quiser dar. Rainha dos corações, Ela pode obter de seu Filho os maiores milagres espirituais ou físicos. Jesus tem poder sobre os vulcões e os terremotos, os ventos e os mares. Ele pode transformar as pedras brutas em filhos de Abraão, ou seja, em homens justos! E Maria Rainha tem o poder da súplica sobre seu Filho onipotente!
Nesse sentido, leitor, se possível, monte um Presépio em seu lar; reze com sua família diante dele; pode também enfeitar uma árvore de Natal; narre aos filhos contos natalinos tradicionais; fale a respeito das cenas relacionadas com o nascimento do Menino Jesus; ensine aos pequenos as belas canções natalinas antigas; mostre que Natal não é sinônimo de presentes, sobretudo não é ocasião de comércio, muito menos de passeios; na noite de Natal, prepare uma ceia iluminada à luz de velas e iniciada por orações próprias para a ocasião. Esses são alguns meios entre vários, mas de que todos dispomos para con
tribuir para restaurar um pouco da atmosfera de Natal em nossas casas. Quem sabe os vizinhos imitem, e se forme assim uma cadeia de luzes! Até o momento bendito e tão esperado em que, por iniciativa de Deus, essa aprazível e benéfica atmosfera de bênçãos e graças se expanda vitoriosamente pelas cidades, pelo País, pelo mundo.
Notas:
1.Cf. Epístola a Tito 2, 11-15.
2.Gradual da primeira Missa de Natal.
3.Gen. 9, 20-27.
4.Por exemplo: Paulo VI, na alocução Resistite fortes in fide, de 29 de junho de 1972; João Paulo II, na alocução de 6 de fevereiro de 1981 aos participantes do congresso "Missões junto ao povo para os anos 80"; Cardeal Ratzinger, no livro Rapporto sulla fede (Paoline, Milano, 1985, pp. 27 ss.).
5.Os corações — ou seja, as vontades, as mentalidades de Jesus e de Maria — são de tal maneira unidos, que formam como que um só coração, segundo a espiritualidade ensinada por São João Eudes.
6.Consagração à Sabedoria Eterna e Encarnada pelas mãos de Maria, de São Luís Maria Grignion de Montfort.
7.Epístola aos Philipenses, 4,13.
2.Gradual da primeira Missa de Natal.
3.Gen. 9, 20-27.
4.Por exemplo: Paulo VI, na alocução Resistite fortes in fide, de 29 de junho de 1972; João Paulo II, na alocução de 6 de fevereiro de 1981 aos participantes do congresso "Missões junto ao povo para os anos 80"; Cardeal Ratzinger, no livro Rapporto sulla fede (Paoline, Milano, 1985, pp. 27 ss.).
5.Os corações — ou seja, as vontades, as mentalidades de Jesus e de Maria — são de tal maneira unidos, que formam como que um só coração, segundo a espiritualidade ensinada por São João Eudes.
6.Consagração à Sabedoria Eterna e Encarnada pelas mãos de Maria, de São Luís Maria Grignion de Montfort.
7.Epístola aos Philipenses, 4,13.
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